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O ATAQUE DO COVIDÃO

fonte: Revista Oeste

O ATAQUE DO COVIDÃO

O vírus chinês ressuscitou a indústria da calamidade pública e são concretos os sinais de roubalheira e desperdício no meio da pandemia
8 MAIO 2020, 06:00

No Rio de Janeiro, mil respiradores custaram R$ 183 milhões — ou R$ 183 mil por unidade. Em São Paulo, cada um dos 3 mil aparelhos vindos da China engoliu R$ 180 mil. No Amazonas, o governo pagou R$ 3 milhões a uma loja de vinhos por 28 respiradores (R$ 107 mil a unidade) considerados “inadequados” pelo Conselho Nacional de Medicina. No Ceará, foram destinados R$ 82 milhões para 700 máquinas (R$ 117 mil cada), também chinesas. Em Santa Catarina, os 200 respiradores comprados a R$ 165 mil a unidade deveriam ter sido entregues em 7 de abril. Não foram. Em Araraquara, no interior de São Paulo, o preço por artefato chegou a ser orçado em R$ 168 mil. A prefeitura da cidade, contudo, cancelou a compra depois que o valor dos equipamentos foi divulgado pela imprensa. O preço de mercado dessas máquinas oscila entre R$ 58 mil e R$ 75 mil.

Esses exemplos são apenas os primeiros indícios de que está em operação a indústria da calamidade pública, ressuscitada pelo desembarque no Brasil do vírus chinês. Em 6 de fevereiro deste ano, a Lei nº 13.979/20 autorizou os governos federal, estaduais e municipais a firmar contratos sem licitação para conter a expansão da pandemia. De lá para cá, o Planalto liberou R$ 226,2 bilhões para as medidas de combate ao coronavírus, dos quais R$ 56,5 bilhões já foram efetivamente desembolsados. Em ano eleitoral, parte dos recursos designados para fornecedores de equipamentos e serviços tem potencial para se transformar em caixa dois de campanhas políticas, financiando a ação de cabos eleitorais, a impressão de “santinhos” e a realização de comícios — além, claro, do puro e simples roubo direto.

São concretos os sinais de que a sociedade brasileira será vítima do Covidão, termo cunhado pelo ex-deputado federal Roberto Jefferson, do PTB. Responsável pela denúncia do Mensalão, Jefferson sabe do que está falando. A exemplo do que representaram para o país o Petrolão e o próprio Mensalão, este Covidão drenará o dinheiro do pagador de impostos e tem potencial para comprometer as finanças públicas para além de 2020, ameaçando a retomada econômica pós-pandemia. O cidadão precisa manter-se vigilante, bem como o Ministério Público e as organizações não governamentais que zelam pelo bom uso do dinheiro do contribuinte, como Transparência Brasil e Centro de Liderança Pública. Os números são eloquentes.

Só o Ministério da Saúde assinou 43 contratos sem licitação — 42 na gestão de Luiz Henrique Mandetta —, que totalizam R$ 2,75 bilhões. As cifras ficam ainda mais obesas quando são adicionados os gastos próprios feitos por Estados e municípios.

O governo fluminense, por exemplo, já empenhou R$ 1,5 bilhão sem licitação.

O contrato mais portentoso, e mais intrigante, rendeu a um certo Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (Iabas) nada menos que R$ 835,7 milhões. Em troca dessa fortuna, a entidade comprometeu-se a gerir 1.400 leitos distribuídos pelos hospitais de campanha prometidos pelo governador Wilson Witzel. Embora os países europeus estejam fechando seus hospitais de campanha quatro meses depois das primeiras mortes, o contrato com o Iabas tem duração de seis meses. A despesa com cada leito alcançará R$ 3,3 mil por dia. Até esta quinta-feira, 7 de maio, apenas um dos nove hospitais estava pronto.

No Ceará, a prefeitura de Fortaleza terceirizou a gestão do hospital de campanha montado no estádio Presidente Vargas. No contrato, assinado com a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), está previsto o pagamento de R$ 46,4 milhões pela gestão de 204 leitos ambulatoriais (R$ 225,4 mil cada). É possível que esses mesmos leitos se transformem em leitos de UTI, o que permitirá que o valor chegue a R$ 92,8 milhões — diárias entre R$ 1,9 mil e R$ 3,7 mil.

Em São Paulo, a prefeitura já fechou R$ 183 milhões em contratos emergenciais. Para gerir por 120 dias o hospital de campanha construído no Estádio do Pacaembu, o Hospital Albert Einstein foi contratado por R$ 20,9 milhões. A diária de cada um dos 200 leitos ficou em R$ 870. Para “gastos extras com o serviço funerário”, que incluíram a compra de 38 mil urnas, o prefeito Bruno Covas reservou R$ 40 milhões. Apesar do coronavírus, São Paulo tem registrado a mesma média diária de mortos do ano passado, 245 pessoas por dia.

Também em caráter emergencial, o governo paulista encomendou a uma empresa, por R$ 14 milhões, um total de 1,1 milhão de aventais para equipes de saúde. Na sede, localizada numa pequena casa alugada em Itapevi, na Grande São Paulo, não foram encontrados material, equipamentos nem funcionários. Depois de entregar 11 mil aventais, Marcelo Neres de Oliveira, dono da empresa — cujo capital social é de R$ 20 mil e que aparece identificada como “editora de livros” no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica —, afirmou que não conseguiria cumprir os prazos combinados. O restante dos produtos só estará disponível em 30 de agosto. Até lá, é provável que a pandemia já tenha terminado.

Aroeiras, na Paraíba, recebeu R$ 214 mil do governo estadual. Em vez de usar o dinheiro para adquirir equipamentos e material hospitalares, a prefeitura optou por comprar cartilhas — à disposição dos interessados, de graça, no site do Ministério da Saúde — com orientações para lidar com a pandemia. A cidade tem 19 mil habitantes.

Araraquara, no interior de São Paulo, tinha registrado até 30 de abril 90 casos confirmados de coronavírus. Destes, 61 estavam curados, 26 aguardavam em quarentena e dois permaneciam internados. Apesar dos números inexpressivos, a cidade, de 236 mil habitantes, empenhou até agora R$ 11,78 milhões.

Em 9 de abril, uma pesquisa feita pela Confederação Nacional de Municípios apontou que, embora fossem 986 os municípios brasileiros com casos de coronavírus, dois mil já haviam decretado situação de calamidade pública para conter a propagação do vírus chinês.

A medida permite não só a assinatura de contratos sem licitação, mas a suspensão de todas as regras orçamentárias vigentes.

Além da fortuna empenhada pelo governo federal até agora, o Senado aprovou no último sábado, 2 de maio, um projeto de auxílio financeiro a Estados e municípios orçado em R$ 125 bilhões. O Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus voltou para análise da Câmara dos Deputados, que vai aprová-lo em segunda votação. O pacote obriga a União a repassar aos governos locais os valores que eles deixarem de recolher entre abril e setembro pela queda na arrecadação de dois tributos: o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que é estadual, e o Imposto Sobre Serviços (ISS), municipal.

Uma prática que não é de hoje

A indústria da calamidade pública é uma brasileirice tão antiga quanto o primeiro estrago causado por desastres naturais. Em 2010, por exemplo, o então prefeito de Itaúna (MG), Eugênio Pinto (PT), forjou documentos referentes a catástrofes que nunca ocorreram para decretar estado de calamidade, segundo denúncia do Ministério Público Federal (MPF). Com o golpe, ele conseguiu R$ 5 milhões para, entre outras coisas, reconstruir uma ponte que nunca existiu.

Em 2001, a Região Serrana do Rio foi atingida por fortes tempestades. O Ministério Público constatou superfaturamento de obras, e o prefeito de Nova Friburgo, Dermeval Barbosa Neto (PTdoB), foi afastado do cargo.

Em 2019, o prefeito Herivânio Vieira Seixas declarou situação de emergência por causa das cheias fluviais em Humaitá, a 700 quilômetros de Manaus. O MP abriu um inquérito, ainda em andamento, para apurar denúncias de superfaturamento no contrato firmado com uma empresa que forneceu cestas básicas à população.

Gestão fiscal, transparência e responsabilidade

Para tentar evitar esse tipo de corrupção, o diretor da organização não governamental Transparência Brasil, Manoel Galdino, acredita que o governo federal deva fortalecer os órgãos de controle do Estado, como o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público Federal. Outro ponto destacado por ele é a  transparência, que permitiria aos brasileiros monitorar o destino dos recursos públicos.

“É muito importante que o governo disponibilize num portal específico as informações sobre o repasse de recursos para o combate ao coronavírus, de modo que sejam acessíveis a todos”, observa Galdino. “Esse dinheiro não pode estar bagunçado, no meio das outras contas. A população tem de saber os detalhes dos contratos, os preços, o CNPJ da empresa contratada, o fornecedor, o prazo e a justificativa para a dispensa da licitação.” Assim, o cidadão poderá checar se os valores combinados entre o gestor público e a iniciativa privada estão de acordo com os praticados no mercado.

Outro problema relevante a enfrentar é o déficit nas contas públicas.

Em 29 de abril, Mansueto Almeida, secretário do Tesouro Nacional, informou que o setor público terá um rombo de R$ 600 bilhões neste ano. O valor representa os gastos do governo federal com as políticas adotadas para enfrentar o coronavírus, somados à queda substancial de receitas que a União terá em razão da crise, número que equivale a 8% do PIB.

Para tentar evitar que esse buraco no orçamento se transforme numa cratera em 2021, o economista Márcio Coimbra, o atual diretor-executivo do Interlegis, braço do Senado que auxilia na transparência das câmaras municipais, avalia que o governo Bolsonaro, em parceria com o Poder Legislativo, precisa adotar medidas como a desvinculação dos fundos infraconstitucionais — verbas congeladas dos ministérios, que a princípio só podem ser destinadas a áreas específicas —, além de promover uma ampla reforma administrativa. Ambas as propostas alteram a Constituição e, portanto, necessitam de três quintos dos votos na Câmara e no Senado para ser aprovadas.

“Desvincular os fundos dará força de manobra para o Ministério da Economia equilibrar os gastos públicos”, explica Coimbra. “Atualmente, esses recursos estão engessados e só podem ir para áreas específicas dentro de cada pasta”. Para ele, a próxima etapa é mexer no funcionalismo público, ao atacar principalmente a estabilidade e os altos salários dos servidores. “A situação é de emergência”, constata. “Se não houver uma política de contenção, o país vai ficar ingovernável”.

O vírus do autoritarismo

A pandemia também revelou a face autoritária de governantes liberados pelo Supremo Tribunal Federal para traçar a estratégia local de combate ao coronavírus. A situação vivida em diversos lugares do país lembra a frase dita pelo vice-presidente Pedro Aleixo no momento da aprovação do AI-5. Único a votar contra o ato institucional que endureceu o regime militar, ele ouviu o presidente Arthur da Costa e Silva perguntar-lhe: “Você não confia em mim?”. Aleixo foi preciso na resposta: “Em você eu confio. O problema vai ser o guarda da esquina”.

Na mesma Araraquara dos quase R$ 12 milhões sem licitação, um vídeo que agitou as redes sociais mostrou o momento em que integrantes da Guarda Municipal — cuja única função é proteger o patrimônio municipal — prendem a administradora de empresas Silvana Tavares Zavatti, de 44 anos, que estava sentada em uma das praças da cidade.

Depois de ser interpelada por um jornalista ligado ao prefeito Edinho Silva (PT), que lhe pergunta o que faz ali, três guardas tentam imobilizá-la com brutalidade, enquanto um quarto fala diversas vezes: “Não resiste, não resiste”. Em seguida, ele determina: “Põe a algema nela”.

Em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, duas mulheres foram presas por caminhar na orla.

Também no Rio, outras duas mulheres e duas crianças foram presas por nadarem na praia de Copacabana. As crianças, uma delas filha do deputado federal Luiz Lima (PSL), são atletas da seleção brasileira infantil de natação do Fluminense e estavam treinando.

Naquele mesmo dia, o juiz Diego Paolo Barausse pôs em liberdade Valacir de Alencar, líder do Primeiro Comando da Capital, o PCC, no Paraná, condenado a 76 anos de prisão por crimes como tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e porte de armas. Valacir obteve o direito à prisão domiciliar depois que seus advogados argumentaram que, por ser hipertenso, o criminoso fazia parte do grupo de risco do novo coronavírus. Uma vez em liberdade, ele rompeu a tornozeleira eletrônica e desapareceu.

Outras cenas de brutalidade envolveram o dono de um Lava Jato em Maringá (PR), que foi imobilizado por guardas municipais com um golpe conhecido como “mata-leão”. Em Teresina (PI), um pequeno empreendedor acabou algemado e preso por ter aberto sua loja no Parque Piauí, bairro da zona sul da capital.

Embora de extrema violência, essas arbitrariedades, registradas diariamente em todo o país, não têm provocado entre os brasileiros a justificável indignação e os ativistas de defesa dos direitos humanos seguem em silêncio. Espera-se que a revolta seja maior com a gastança da indústria da calamidade pública. O vírus chinês já é um problema de bom tamanho. Não precisa ter como aliado os corruptos nativos.

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